quinta-feira, abril 13

Um poema por dia de Alfredo Reguengo (I I)



A poesia que aqui trago de Alfredo Reguengo, não é necessariamente cronológica. Este poema foi composto entre 1937 e 1941, em período de guerras que atravessavam o Mundo com o advento do nazi/fascismo. Reguengo remete-nos para as nossas contradições. O sonho de um mundo “azul-cobalto”, sentido no “búzio repleto de harmonia” e a “voz da Multidão” que lhe enchiam os ouvidos de “as pragas e soluços/ os gritos e os gemidos”. Alfredo Reguengo não fêz de conta que não via ou não ouvia e deixa, “ sem fugir/sem temer/sem vacilar” e de “peito aberto” que a Multidão (em letras grandes) “tome posse de mim” e percorreu a “sua” Estrada de Damasco. Alfredo Reguengo, num outro poema, diz que a sua poesia não precisa de grandes explicações. Tem razão. Apesar de extremamente culto a linguagem é muito acessível, apelativa e muito directa.

Estrada de Damasco

Também eu, também eu fechei os olhos
para não ver a negridão da vida!...
e, fazendo parar o turbilhão sangrento das minhas próprias angústias
olhava para dentro de mim
(como para a superfície calma de um rio)
à procura
dum céu azul de sonho
que eu andei a pintar, anos a fios,
para as horas nocturnas do naufrágio...

Também eu tapei com as mãos os meus ouvidos
para não escutar
as pragas e os soluços,
os gritos e os gemidos!
E ouvia dentro de mim, como num búzio,
suaves harmonias irreais
que, para me embalar na tempestade,
ia compondo aos poucos,
dia a dia...

Tambéu eu, com as asas mutiladas,
voei ao alto,
em ascensão covarde!
E, lá de longe, não via,
nem ouvia:
-era eu só e o meu azul-cobalto
e o meu búzio repleto de harmonia...

Depois, quando caía,
vinha a tristeza enegrecer o meu azul irreal
e os gritos de multidão
que junto a mim se arrastava,
eram golpes horríveis de punhal
no silêncio harmonioso do meu búzio
que me tinha embalado num sonhar distante...

E caíam sobre mim -mortalha de sol-posto-
os panos negros do desânimo,
as noites frias da desilusão
e as brumas do desgosto...

E quando voltava a voar para o azul-cobalto,
já ouvia
(voz do remorso a esfaquear a bruma...)
o grito lancinante
que eu próprio havia
de soltar quando caísse...

Um dia, quando tentava fugir,
para o meu mundo azul,
a voz da Multidão entrou nos meus ouvidos,
tomou posse de mim
-e levou-me consigo!...
E, agora enfrentando a vida a vida a peito descoberto,
sem tapar os ouvidos, nem os olhos,
sem fugir,
sem temer,
sem vacilar...

Deitei ao mar o búzio em que escutava a voz nocturna,
(aquela voz estranha
que me fazia adormecer);
derramei sobre a terra sequiosa o meu azul-cobalto
e ele mudou de cor
feito caudal dum rio que se solta...

E, agora, vamos todos,
-ombro a ombro e mãos nas mãos,
marchando para o Sol que começa a amanhecer!
E, atrás de nós,
no sulco ensanguentado que os nossos pés deixaram na montanha,
fica uma estrada de luz,
que há-de guiara a Multidão que avança!...

-E eu hoje sou um grito de revolta
que sai da boca de milhões de irmãos!...

Alfredo Reguengo

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