terça-feira, abril 25

Coisas sérias e banais

A vida corre plena de promoções e banalidades. É a promoção das imobiliárias com os ricos a comprar o que os pobres estão a vender, é a promoção dos carros, muitos carros para todos os gostos, é a promoção exagerada de electrodomésticos que não sei se para todos os gostos, com micro ondas ao preço de cinco euros, para lançar fora no dia seguinte, é a promoção dos mais luxuosos casacos de pele, e o animal que ficou sem pele que se lixe, importa é ter um outro animal com a bolsa cheia de euros para comprar casacos de pele e de pelo. Enfim, é uma festa, a festa da concorrência desleal, em que cada um refila ao expor e promover o melhor e nunca o pior, o mais eficaz e nunca o mais garantido, tudo tão espectacularmente apregoado como se fosse o detergente a lavar mais branco. Oh, meu deus, e quantas vezes tudo acaba por ser tão enigmaticamente sujo!

Daí todos comungar da afirmação em fazer o impossível para melhor servir o cidadão, já que o possível não são capazes de fazer, nunca o quiseram fazer, mas dizem que sim, que são os melhores do mundo, e que só não fazem mais porque não os deixam... como os nossos deputados comuns acusados de abandonar o parlamento para gozo dumas férias pela páscoa e ter agora a maçada de forjar uma desculpa pelas faltas. Eles, coitados, vítimas sim senhor de exploração no trabalho político forçado que faz doer os cotovelos e provoca uma danada comichão na cabeça...

Ora essa!... não pensem que os ilustríssimos passam a vida a trautear cantigas para embalar português. Nem pensem que têm assim tanta falta de visão que os não conduza a fugas a debates e votações parlamentares. Tão-pouco pensem que os interesses que defendem não vão direitinhos para uns tantos Belmiros de Azevedo a quem o diabo havia de tentar numa reles subjugação ao capital estrangeiro para lançar OPAs sobre a PT e BPI. Não. É o sistema, meus senhores, este selvático sistema, por eles estabelecido, em que se dá primazia aos números e se esquecem as pessoas. Isso mesmo, este terrível sistema (que são eles) que leva os ricos a crucificar os pobres.

Bom, de Espanha, entretanto, chega-me um CD de Paco de Lucía “Cositas Buenas “, que coloco no leitor e perco-me nos acordes desta música sem esquecer as editoras e livreiros às cabeçadas com o ministério por causa dos livros escolares. Que pena! Logo neste tempo em que tão didacticamente se preocupam com livros que pegaram moda, por onde abundam livros de jogadores, de directores, de treinadores de futebol e de tudo que acaba em dores, horrores e fedores. Pois sim senhor, é o que mais se vende e o que mais rende. Porque este mundo gira muito bem em redor do futebol, das celebridades e das banalidades, e, por este andar, já o disse e repito, não tarda que apareça nas bancas um livro da autoria de Bush com a biografia de Bin Laden ou este a elogiar aquele, porque ambos têm interesses que envolve biliões de dólares. É o que se vende... sem vergonha nem peçonha, satisfazendo falsas rivalidades e enormidades, e a guerra que se lixe como se lixaram os milhares de homens e mulheres que no Afeganistão e no Iraque já morreram.

Fico-me fora do sistema, principalmente fora daquelas superfícies onde tudo se impinge e não há sequer um WC para serviço público onde se possa fazer uma mija, com culpas para a entidade que passa licenças sem vistoria, o que é uma vergonha nesta terra. Onde é que já escrevi isto?

Mas vergonha perderá qualquer escriba, um dia a sofrer de prostatite e a procurar dar uma valente regadela por detrás dum frigorífico ou máquina de lavar. Bem feito, e digno de aplauso. E demais a mais eu que já fui tentado a fazê-lo. Só que, enfim... razões de ética e bom senso.

Fico-me pelos livros com cheiro a nafta, ouvindo estes acordes flamencos de Paco de Lucía, sem palmas nem sapateado, para dar brilho à minha biblioteca nestas sublimes e silenciosas tardes de Abril. É então que leio um poema de Carlos de Oliveira, um conto de Manuel da Fonseca, um romance de Mário Cláudio, estes agora com sabor a mar e a literatura, numa grata duplicidade de beleza e sonho, cuidadosamente assumida no arco das palavras que dia a dia vamos desenhando.

Álvaro de Oliveira

Também, publicada no Correio do Minho de 24.04.2006

Sem comentários: