Inquietação dos dias
Aquela tarde de férias, nas minhas piores férias de sempre, passou a evaporar-se de um sopro. Tudo me caía às mãos e logo tudo das mãos desaparecia. As mãos, sempre as mãos a convocar o sol e a tecer as mantas que me hão-de agasalhar no próximo inverno.
O tear é essa imensidão de repouso e descanso que ora passa por um tempo desprevenido e severamente abandonado, sem que outro linho lhe segrede a idade.
É Agosto e tudo está queimado. Todos os montes por aqui cheiram a terra queimada. A terra tomou a cor negra do carvão. As aves desapareceram. Todos os animais selvagens foram engolidos pelas chamas. Morreram milhares homens, mulheres e crianças. E os rios onde outrora mergulhei sonhos e ilusões não seguram sequer uma réstia de azul. Tudo por aqui é estranho a este olhar esbatido pela tarde que ora vai ao fim.
Antes, eram os bombardeamentos no Líbano; e o meu olhar húmido. Era Israel a furar o mais um tratado de cessar fogo; e a minha esperança entristecida. Era a hipocrisia dos americanos a ver os estragos da guerra; e a minha inteligência insultada.
Vou não vou, decido-me, olho em frente e caminho por dentro destes dias de inquietação para me insurgir contra essa corja de incendiários e patifes de guerras santas que soltos ainda se passeiam por lugares que elegi para deles fruir do verde e da frescura.
O olhar estende-se inquieto pelo negrume das cinzas que por este chão ficou, e tomo uma palavra para nela expressar o meu repúdio: - Porra! - É aqui que vejo que uma só palavra vale tudo e mil palavras valem nada. E que mais poderei dizer sobre a paisagem?
Para já, há noite e solidão. Pouco do que havia nos resta agora. Precipito o andar para o interior da noite e apercebo-me que sou invadido por uma indomável sede de justiça.
Ontem, por entre as chamas no Líbano o ar estava suspenso e sufocava as aves no leve manejar das asas. Aí atirei o olhar para lá dos rios, para lá dos montes, para lá das nuvens, para lá das cidades destruídas e, já na ausência do sol que entretanto desaparecera com as aves, procurei segurar as últimas horas daquela tarde que de um sopro se evaporava. Foi então que regressei com a esperança por melhores dias, ainda que os ataques no Líbano continuem.
Por melhores dias, sim, esses dias em que o mel escorrerá em abundância pelos dedos do tempo até saciar os desprotegidos e os refugiados das guerras e dos sucessivos ataques de incêndio. Contudo, nada direi da inquietação dos dias, desses dias de incerteza e dúvida, de dor e desespero, de pronto e de solidão, porque foi aí que os poderosos e os incendiários assaltaram os celeiros da nossa memória e levaram consigo o trigo da nossa esperança.
Creio por isso mesmo que a hora está próxima, essa hora que repentina passará como o vento, para consagrar o olhar das aves num voo de pureza admirável até ao limite dos dias desejados. E, com eles, assistir à destruição total desta satânica dualidade: vingança e ódio.
Álvaro de Oliveira
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